Gordurinha: Abrindo as Gavetas da Memória Musical - Texto de Elizabeth Nogueira




"Ganhar um troféu é passar por todo um caminho cheio de obstáculos! É cruzar toda a passarela do sucesso, depois de ter enfrentado cara-a-cara, mil dificuldades. Ganhar um troféu é ter passado pelo mutismo da platéia dos primeiros dias. É ter ouvido piadas de corredores... e ter conquistado finalmente o aplauso daqueles que silenciavam ontem, e hoje resolveram gritar freneticamente". (Gordurinha - referindo-se ao Troféu Luiz Gonzaga recebido pelo Trio Nordestino)

Waldeck Artur de Macedo - Gordurinha - entrou para a Imortalidade

Se tivesse que descrever Gordurinha com mais uma qualidade dentre tantas que já lhe são atribuidas, eu diria: resiliente. Gordurinha passou por várias percas, desesperava, chorava, foi ao chão diversas vezes, mas agarrou-se a sua vontade de vencer e renasceu sempre que a vida assim dele exigiu, dando continuidade aos ideais que davam sentido a sua vida.

Aos 4 anos Gordurinha sofreu a perda de seu pai e contou com o apoio de seu avô para receber uma educação de qualidade. Na adolescência escrevia poemas, aprendeu os primeiros acordes de violão. Confiante posicionou-se no caminho que apontava a direção da realização de seu sonho: ser um artista. Na juventude empolgou-se com as primeiras apresentações como cantor do conjunto Caídos do céu; e em sua atuação na rádio como comediante tendo como parceiro o compositor e humorista Dulphe Cruz; e depois como integrante de uma pequena troupe de artistas mambembes. Gordurinha misturou os melhores ingredientes e pronto. Fez conhecido o artista que era.

Descobri fatos incríveis pesquisando a vida e obra de Gordurinha. Ri e chorei lendo o livro "Gordurinha: Baiano Burro Nasce Morto", escrito por Roberto Torres. E reconheço, é palpável a ideia de que o que aproxima o artista de seu público é saber o que se guarda na gaveta, ou seja aquelas preciosidades ao alcance apenas dos familiares e dos amigos. Fatos corriqueiros, curiosidades, dúvidas e certezas... Então, parafraseando Rolando Boldrin que diz: "Vamos tirar o Brasil Musical da Gaveta". Vamos tirar as Memórias Musicais de Gordurinha da Gaveta! Aprendi que sempre que compartilhamos fatos memoráveis adicionamos a estes doses de carinho, emoções e um pouco mais de história.

Em visita aos Blogs de familiares e amigos de Gordurinha percebo o quanto é contagiante as lembranças da vida e obra deste artista. Cada um deles tem um arquivo pessoal a compartilhar. E posso dizer que a paixão de Gordurinha pela palavra falada, escrita e musicada antes uma semente, encontrou terreno fértil e propagou-se em flores e frutos. Uns fazem rádio, cantam, outros escrevem. E assim diante de tamanha efervecência artistica eu como tantos outros que não tiveram o prazer de assistir as apresentações de Gordurinha... sentem como se o tivessem conhecido pessoalmente. De modo que vou citar aqui duas situações distintas que confirmam tal afinidade.

Outro dia a Leide Warthon, filha do Gordurinha, reuniu-se com amigos, e remexeu suas memórias guardadas carinhosamente em uma gaveta e cantou com os amigos "SÚPLICA CEARENSE", de Gordurinha e Nelinho, tendo o cantor-compositor e músico Zé Di acompanhando-os ao violão. Não estive presente mas vi as fotos e o vídeo do que se pode chamar de um dia agradável; e imaginei todo o saudosismo que impregnou aquela reunião.

Sintonia semelhante se faz notar nas poesias escritas por Waldeck Luiz. Algumas de suas poesias e o Blog que fez em homenagem a seu avô permitem ao apreciador fazer uma releitura da emoção, história e cultura presentes na vida e obra de Gordurinha. Suas memórias musicais ao sairem da gaveta ampliam-se em significantes e significados, como na poesia:

GORDURINHA
Waldeck Luiz

QUEM SABE UM DIA OS MALES SERÃO CURADOS
E OS ERROS DO PASSADO SERÃO PASSADO
QUEM SABE UM DIA ESSA CORDILHEIRA DE ÓDIOS COMO FOI DITO
SEJA FINALMENTE DISSIPADA COM O CALOR DA PAZ

ESSA CATARATAS DE LÁGRIMAS SEQUE
COMO ERA SECO SEU SERTÃO
E DEUS FAÇA CHOVER COMO FEZ CHOVER
NA SUA SUPLICA CEARENSE
QUE DEUS NOS FAÇA MELHOR COM SUA
PRECE PARA OS HOMENS SEM DEUS

QUE SEJAMOS TAO FELIZES
QUE POSSAMOS MISTURAR CHICLETES COM BANANA
VIAJAR NA CANTAREIRA
QUE ESSA PRECE SEJA OUVIDA
QUE MEU FILHO APRENDA
COM UMA CARTA DE ABC NA MÃO

AH , VIU
ELE NÃO VAI ENTENDER BULUFAS
E VAI CASAR COM UMA ORORA ANALFABETA

DEIXO ENTÃO
MEU POEMA DOS SEUS NÃO CABELOS BRANCOS
E ACEITE
O MEU GOOD BYE".

Os mesmos resquícios memoriais encontramos nas poesias: "Sociedade Falida"; "Baião para Americano Ver". Tais palavras trazem uma assinatura que identifica o artista que a inspirou: Gordurinha. A cada geração suas palavras podem até ganhar novos frascos, mas a essência é sempre a mesma.

Gordurinha mais que uma referência aos iniciados e iniciantes na arte, foi exemplo de talento, perfeição, genialidade e criatividade. Capaz de "rasgar seu espaço" criou personagens humoristicas peculiares, meio matuto, cheios de sabedoria popular e perspicácia, como Seu Abóbora. Compôs samba, coco, baião, mambos. Mencionou a bossa-nova o tropicalismo... Disseminou protestos sutis, implicitos e explicitos. E isso em plena ditadura, dias em que anonimato, discrição, omissão significavam: ter casa, emprego; e principalmente manter-se vivo...

Síntese do artista completo. Gordurinha foi um dos mais dinâmicos artista de circo, teatro, rádio, televisão, cinema. Cantava, tocava, atuava, apresentava, divertia. Admirável compositor-cantor, suas letras trazem a "bagagem" de suas vivências, ao mesmo tempo em que divertiam também combatiam a intolerância e o preconceito. Autor de obras primas da nossa música, como: "Súplica Cearense" e "Chicletes com Banana". Ator cativante, basta ver sua participação na comédia musical "Titio não é Sopa" (1959), de Eurídes Ramos lançada pela Atlantida Cinematográfica. Como produtor musical ajudou a produzir um dos melhores discos do Trio Nordestino. Acima de tudo, Gordurinha deixa registros de um cidadão engajado as causas sociais. Prenunciou o manguebeat de Josué de Castro e Chico Science na emblemática "Vendedor de Caranguejo".

Gordurinha eternizou-se deixando um legado impar na memória sócio-cultural brasileira, com a profundidade necessária para criar raízes e também atrair prestígio de "um cartaz internacional", como dizia a letra de "Calouro Teimoso", composição de Gordurinha e Nelinho.

Viva Gordurinha!

Elizabeth Nogueira


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